A casa nunca estava vazia.
Fora sempre assim, em todas as casas onde Dona Esperança viveu.
Muito simpática, carismática, transbordante de sorrisos e alegria de viver; cativava a todos com sua simplicidade quase interiorana.
A vida a colocara em contato com as misérias humanas por tantas vezes, que Dona Esperança aprendeu a contornar quase todas as situações com tato e cautela, porém sem jamais abandonar sua natureza afável e doce.
Com um passado carregado de histórias e estórias, provenientes das diversas pensões que possuíra e administrara, Dona Esperança tinha sempre na ponta da língua um exemplo pronto para qualquer problema e situação. Por muitas vezes o exemplo trazia oculto, nas entrelinhas, também a solução. E ela jamais se escusava de fornecê-los.
Fartos eram seus dias, bem como suas lembranças.
Dona Esperança tinha 80 anos, intensamente vividos e meticulosamente registrados por sua invejável memória.
A muitos havia ajudado. Muitos lares desfeitos ajudara a restaurar, incontáveis órfãos se encarregara de alimentar, abrigar e, não raro, "adotar" informalmente; assumindo por vezes um fardo deveras pesado, porém desincumbindo-se sempre da maneira mais digna e admirável.
Por conta dessa característica ímpar, Dona Esperança estava sempre rodeada de pessoas gratas, cativadas por sua benevolência a toda prova.
É claro que alguns aproveitavam-se disso para tirar grandes vantagens encima da pobre senhora. Aliás, paupérrima.
A despeito de seu passado repleto de trabalho e dedicação, Dona Esperança não recebera da vida a paga material por seus esforços. Conheceu dias de pródiga fartura, desfrutou de posição social respeitada, adorava frisar. Contudo, tão generosa e desapegada, o que obtinha com o suor do seu trabalho acabava sempre indo para as mãos, barrigas e os bolsos sequiosos de amigos, parentes e agregados. Ainda assim garantia, aos sorrisos, que sua atual condição financeira não a incomodava.
Atualmente vivia em uma casa simples. Espaçosa, mas simples.
A mobília da moradia era resultado de muitos anos de mudanças, trocas, doações, consertos e remendos diversos. Um genuíno depósito de cacarecos, objetos desnecessários e estorvantes, que outrora tiveram seu lugar de destaque em outras vivências, outras residências.
Seus utensílios de cozinha não passavam de remanescências de antigas baixelas, talheres, copos, pratos; cada qual com sua cor e sua historieta particular.
Objetos pessoais Dona Esperança quase não possuía, salvo apenas artigos de higiene e alguns parcos itens de beleza, por assim dizer.
Tudo que era dela estava disponível, a qualquer momento, para quem quisesse.
Por conta desse desprendimento material, Dona Esperança se colocava em sérios apuros. Não raro fazia 'malabarismos' para que o dinheiro de sua aposentadoria conseguisse vencer a maratona dos dias do mês. Infelizmente, malgrado seu, os últimos dias dos meses vinham sagrando-se vencendores fazia algum tempo. Nada que tirasse seu bom humor ou que reduzisse o número de estômagos vazios, trazidos por rostos conhecidos, que lhe batiam à porta todo santo dia. Dona Esperança jamais deixava sem alimento um faminto que lhe procurasse, ainda que para isso fosse necessário dividir, ou mesmo abdicar de sua própria refeição.
Devido as dificuldades monetárias associadas ao velho hábito de partilhar seu teto, Dona Esperança pôs a disposição, para alugar, um dos quartos de sua residência.
Ali, por anuência do Destino, me instalei.
E foi dali que assisti o desenrolar destas experiências que narrarei, em três ou mais partes.
(Conto livremente inspirado em fatos reais)